Uma leitura da filosofia pragmaticista de Charles S. Peirce a partir de Karl-Otto Apel.
Postado por Glauber da Rocha às 18:241. O problema
Toda filosofia transcendental se caracteriza como sendo aquela que pergunta pelas condições de possibilidade e de validade para o nosso pensar enquanto tal. Na tentativa de resolver o problema acerca da questão de como o nosso conhecimento é possível, e de quais os critérios que podem conferir validade ao conhecimento, é que Kant dedicou a sua vida inteira como filósofo. Nessa sua empreitada, ele acabou indo mais longe, perguntando não somente como o conhecimento é possível, mas também seus limites.
Na pergunta transcendental, a sua vez, está embutida uma pergunta que vai mais além, a saber: como a experiência é possível? A resposta para essa interrogação fundamental levou Kant a afirmar que a experiência é possível graças à “síntese transcendental da apercepção”, que garante a existência dos juízos a priori. Não obstante, com os grandes avanços da lógica moderna, bem como também as grandes descobertas no âmbito da física, a noção de juízos sintéticos a priori passaram, no cenário filosófico, para a condição de enunciados sem sentido .
O nosso objetivo, nesse artigo, é demonstrar uma outra proposta filosófica que responde pela questão de como a experiência é possível. Essa proposta filosófica é de um pensador norte-americado chamado Charles S. Peirce, fundador do pragmatismo.
2. Resolução do problema.
Apel interpreta a “lógica sintética da pesquisa” de Peirce como uma transformação da lógica transcendental de Kant. O motivo que leva Apel para a presente interpretação se deve sobretudo ao fato de que Peirce substitui a unidade da “síntese transcendental da apercepção kantiana”, enquanto fundamento objetivo da ciência e da filosofia, pela unidade lógica da “interpretação consistente dos signos” . Deste modo, Peirce empreende um “giro” filosófico rumo à uma crítica cognitiva enquanto análise lingüística, em oposição à crítica cognitiva enquanto análise da consciência, própria dos filósofos modernos como Descartes, Kant e Husserl. Com isso, a partir desta sua nova teoria do conhecimento, Peirce consegue resolver definitivamente o problema da relação entre linguagem e pensamento.
Para Peirce, o mundo, ou melhor, o universo, é um grande argumento a ser interpretado, é um signo que representa algo para seu interpretante . Sendo assim, o sujeito, além de ser um signo também, ele é, antes de tudo, um interpretador. E na condição de interpretante, no fenômeno do conhecimento, ele não está submetido somente no paradigma da relação diática entre sujeito e objeto tão somente, mas está sujeito a uma relação triádica composta por ele, pelo signo, e pelo objeto, compondo, os três, a realidade. A partir destes pressupostos, não se pode mais afirmar que o sujeito pode ter conhecimento do que não seja lingüístico (extra ou supra-lingüístico) tal como pressupõe uma fenomenologia voltada à percepção e à evidência da realidade enquanto “imagem” da “estrutura” lógico-formal ontológica do mundo.
Isto, no entanto, não quer dizer que não haja uma realidade extra ou supra-lingüística, como no caso das “imagens” da realidade ou dos “modelos” estruturais entre coisas e estado de coisas; significa, isso sim, que só há conhecimento por meio da linguagem. Do mesmo modo, não se pode conhecer o pensamento sem a mediação lingüística, pois, conforme Peirce, “o único pensamento possível de se conhecer é o pensamento formulado signicamente”; e o “pensamento que não se pode conhecer, não existe” . Portanto, não há a possibilidade de existir algum pensamento intuitivo absoluto, uma vez que todo conhecimento formulado por signos tem a sua realidade não em uma visão instantânea e carente de relações, e sim na interpretação de um pensamento-signo por meio de um pensamento que sucede no tempo, o qual, a sua vez, se converte em um signo para outro pensamento, e assim sucessivamente, até o infinito .
Para Peirce, ainda que exista fenômenos exteriores a linguagem humana, eles não deixam de ter um caráter sígnico. Não obstante, quando esses fenômenos são interpretados, eles alcançam apenas um caráter sígnico “degenerado”. Para Peirce, há signos que são “duplamente” degenerado, como no caso das “imagens” ou “modelos”, que carregam em si a função icônica, a qual serve para “representar” que algo é assim na qualidade de (quali-signo, ícone, Primeiridade). Dentre esse signo, Peirce explica que há um outro signo, que é “degenerado” de modo simples. É o caso da função dêitica da linguagem (índice), que está implicada sobre a relação fática dinâmico-física de determinados processos naturais .
De uma maneira distanciada, podemos então dizer, com Peirce, que a realidade, mesmo sem a existência do ser humano, possui funções lingüísticas para poder ser interpretada: o ícone como qualidade de algo assim em sua presentidade, e o índice, como indicativos de algo para algo em sua secundidade. Essa linguagem, poder-se-ia dizer em termos do jovem Wittgenstein, é a linguagem que figura a estrutura ontológica do mundo. Porém, a relação sígnica da linguagem é genuinamente triádica, isto é, ela é composta de signo, do objeto designado e do interpretante. Dessa maneira, tanto a função sígnica do ícone, quanto a função sígnica do índice, só são o que são graças a um terceiro, ou seja, ao interpretante. A linguagem deste, que é a linguagem humana, a sua vez, ao contrário das funções icônica e deítica, se baseia fundamentalmente em símbolos (terceridade). No entanto, a linguagem humana só é possível graças as suas três funções: a icônica, a deítica e a simbólica, aonde uma complementa mutuamente a outra .
Para Apel, a partir da semiótica de Peirce é possível colocar em xeque o atomismo lógico do primeiro Wittgenstein, e todo o desenvolvimento da filosofia analítica moderna da primeira fase que exclui o sujeito da filosofia e que não confere relevância filosófica à dimensão pragmática da linguagem. Conforme Apel, analisar a linguagem somente por meio de sua dimensão sintático-semântica é analisar uma linguagem que possui somente as funções icônicas e deíticas, e não a função simbólica . Mas, acima de tudo, para Apel o maior mérito da semiótica de Peirce é a transformação que ela efetua em relação à filosofia clássica transcendental de Kant. Com ela, Peirce pode então não somente demonstrar que é a linguagem que fundamenta o saber e o agir humanos com sentido enquanto tal, como supera também a distinção kantiana entre objetos cognoscíveis e objetos incognoscíveis, entre filosofia prática e filosofia teórica, e com isso, a definitiva superação do solipsismo metódico.
Na transformação da filosofia clássica transcendental de Kant, Peirce substituiu a “lógica transcendental” kantiana, que tem o seu ponto “mais alto” na unidade da “síntese transcendental da apercepção”, por uma “lógica sintética da pesquisa”, que tem o seu ponto “mais alto” na unidade da “última opinião da comunidade indefinida de investigadores”. No processo para tal transformação, Peirce parte do três tipos de raciocínios de sua lógica da pesquisa, bem como os três tipos de signos como ilustrações de suas três categorias fundamentais, para poder chegar numa resposta definitiva de como a experiência é possível – para Kant, a experiência é possível graças a “síntese transcendental da apercepção”.
Para demonstrar esse itinerário peirciano, é sensato antes de qualquer coisa definir o conceito de signo proposto por Peirce. Para ele, um signo, ou Representamem, é “algo que representa, para um interpretante, algo diferente em certo aspecto ou qualidade” ; ou melhor: “é um Primeiro que se coloca numa relação triádica genuína com um Segundo, denominado seu Objeto, que é capaz de determinar um Terceiro, denominado seu Interpretante, que assuma a relação triádica com seu Objeto, na qual ele próprio está em relação com o mesmo objeto .
Conforme Peirce, no signo estão implícitas três categorias: a qualidade isenta de relações, que expressa algo como algo em seu ser-assim por meio da função do signo ícone (imagem), e que se chama categoricamente de “presentidade” ; a relação diática do signo com os objetos por ele designado, que corresponde ao signo índice (pronomes como: isto ali) e que é “secundidade” ; e por fim, a relação triádica do signo enquanto mediação de algo para um interpretante, que é a categoria “terceridade” e tem o símbolo como signo correspondente . Ora, a partir desses três tipos de signos, Peirce pode então abstrair os três raciocínios da pesquisa, que são: a dedução, que corresponde à terceridade, e que é um mediação racionalmente necessária; a indução, que corresponde à secundidade, e que é um raciocínio que funciona como confirmação do que é geral pelos fatos apresentáveis aqui e agora; e finalmente, o raciocínio abdutivo ou hipotético, que corresponde à terceridade e que funciona como cognição de novas qualidades do ser-assim .
Após essa distinção entre os raciocínios, Peirce encontra no raciocínio hipotético a resposta de como a experiência é possível. Para Peirce, o raciocínio hipotético, enquanto opinião, além de ser o único raciocínio que pode elaborar um conhecimento novo do real , elimina definitivamente a distinção kantiana entre objetos cognoscíveis e incognoscíveis. Para Peirce, dar uma opinião sobre real significa dizer que o real é cognoscível, de tal maneira que a única distinção que se pode fazer sobre a realidade é o que já se conhece e o que se pode conhecer infinitamente, ao longo do tempo. Conforme Peirce, até mesmo dizer que há coisas em si incognoscíveis é dar uma opinião semanticamente consistente e verdadeira sobre as coisas-em-si. Deste modo, a possibilidade de dar uma opinião sobre o real responde como a experiência é válida e possível .
Para Peirce, uma vez que a opinião representa a essência do conhecimento, é sobre ela que se pode conferir validade ao saber e o agir com sentido enquanto tal. Não obstante, essa opinião não pode ser a opinião de uma única pessoa, ou de uma consciência em geral em sentido kantiano, mas deve ser a última opinião que se alcança ao longo do tempo por todos os membros da comunidade indefinita de investigadores, sob a reserva do princípio de falibilismo. E, uma vez que essa opinião é dada na comunidade indefinida de investigadores, é exigido por parte dos seus membros um certo engajamento ético, aonde cada investigador tem necessariamente de se despojar de seus interesses, inclusive seus interesses existenciários (em sentido kierkgaardiano) pela salvação de sua alma. Sendo assim, diante de tudo isso, pode se dizer que Peirce elimina os conceitos de coisa-em-si incognoscível, de aparência e mera ilusão e também, com o seu socialismo ético, a superação da distinção entre filosofia teórica e prática .
3. Conclusão.
Peirce, ao mostrar que a experiência é possível graças a capacidade humana de opinar, supera dessa maneira tanto o solipsismo metodológico da corrente da filosofia clássica transcendental de cunho kantiano, quanto a teoria analítica dos filósofos analíticos da primeira fase. Ao fazer a superação do primeiro, ele resolve o problema entre pensamento e linguagem, afirmando que não há conhecimento sem a mediação lingüística – não há “verdades” auto-evidentes e auto-intuitivas. Ao superar o segundo, ele coloca em cheque aquilo que a reviravolta lingüístico-pragmática colocou bem depois dele, a de que a análise sintático-semântica da linguagem é insuficiente para validar os nossos conhecimentos, pois é preciso analisar a linguagem em todas as suas dimensões: sintática, semântica e também pragmática.
Não obstante, o seu maior mérito consiste, apesar de sua limitação científica , deixar por conta de uma comunidade de investigação a questão acerca do sentido de nossos saberes e de nossas ações, e não por conta de uma “consciência em geral” ou por conta de “teorias sobre coisas ou estado de coisas”. Fazendo isso, ele deixa por conta de um “nós” científico , o qual Apel utilizará mais tarde para a realização de uma filosofia que tem como princípio não o “eu penso”, mas sim o “nós pensamos, nós argumentamos, nós raciocinamos.”
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I – Introdução, 2000
______________ Transformação da Filosofia II – De Kant a Peirce: A transformação semiótica da lógica transcendental, 2000.
______________ El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, 1997
PEIRCE, Charles, S. Semiótica – Ícone, Índice e Símbolo, 1995
RUEDA, Luis Sáez. Apriori de la facticidad y apriori de la idealizaçion – Opacidad y transparência. Entrevista com K. –O. Apel, In: FERNÁNDEZ, Domingo Blanco. (org. Et. al.) Discurso y realidad, em debate com K. –O. Apel, 1994
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Correntes fundamentais da ética contemporânea, 2001.
DELACAMPAGNE, Chiristian. História da Filosofia no séc. XX, 1997, p. 18-19.
SILVA, Glauber da Rocha. O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem em Karl-Otto Apel, 2007, p. 29.
Toda filosofia transcendental se caracteriza como sendo aquela que pergunta pelas condições de possibilidade e de validade para o nosso pensar enquanto tal. Na tentativa de resolver o problema acerca da questão de como o nosso conhecimento é possível, e de quais os critérios que podem conferir validade ao conhecimento, é que Kant dedicou a sua vida inteira como filósofo. Nessa sua empreitada, ele acabou indo mais longe, perguntando não somente como o conhecimento é possível, mas também seus limites.
Na pergunta transcendental, a sua vez, está embutida uma pergunta que vai mais além, a saber: como a experiência é possível? A resposta para essa interrogação fundamental levou Kant a afirmar que a experiência é possível graças à “síntese transcendental da apercepção”, que garante a existência dos juízos a priori. Não obstante, com os grandes avanços da lógica moderna, bem como também as grandes descobertas no âmbito da física, a noção de juízos sintéticos a priori passaram, no cenário filosófico, para a condição de enunciados sem sentido .
O nosso objetivo, nesse artigo, é demonstrar uma outra proposta filosófica que responde pela questão de como a experiência é possível. Essa proposta filosófica é de um pensador norte-americado chamado Charles S. Peirce, fundador do pragmatismo.
2. Resolução do problema.
Apel interpreta a “lógica sintética da pesquisa” de Peirce como uma transformação da lógica transcendental de Kant. O motivo que leva Apel para a presente interpretação se deve sobretudo ao fato de que Peirce substitui a unidade da “síntese transcendental da apercepção kantiana”, enquanto fundamento objetivo da ciência e da filosofia, pela unidade lógica da “interpretação consistente dos signos” . Deste modo, Peirce empreende um “giro” filosófico rumo à uma crítica cognitiva enquanto análise lingüística, em oposição à crítica cognitiva enquanto análise da consciência, própria dos filósofos modernos como Descartes, Kant e Husserl. Com isso, a partir desta sua nova teoria do conhecimento, Peirce consegue resolver definitivamente o problema da relação entre linguagem e pensamento.
Para Peirce, o mundo, ou melhor, o universo, é um grande argumento a ser interpretado, é um signo que representa algo para seu interpretante . Sendo assim, o sujeito, além de ser um signo também, ele é, antes de tudo, um interpretador. E na condição de interpretante, no fenômeno do conhecimento, ele não está submetido somente no paradigma da relação diática entre sujeito e objeto tão somente, mas está sujeito a uma relação triádica composta por ele, pelo signo, e pelo objeto, compondo, os três, a realidade. A partir destes pressupostos, não se pode mais afirmar que o sujeito pode ter conhecimento do que não seja lingüístico (extra ou supra-lingüístico) tal como pressupõe uma fenomenologia voltada à percepção e à evidência da realidade enquanto “imagem” da “estrutura” lógico-formal ontológica do mundo.
Isto, no entanto, não quer dizer que não haja uma realidade extra ou supra-lingüística, como no caso das “imagens” da realidade ou dos “modelos” estruturais entre coisas e estado de coisas; significa, isso sim, que só há conhecimento por meio da linguagem. Do mesmo modo, não se pode conhecer o pensamento sem a mediação lingüística, pois, conforme Peirce, “o único pensamento possível de se conhecer é o pensamento formulado signicamente”; e o “pensamento que não se pode conhecer, não existe” . Portanto, não há a possibilidade de existir algum pensamento intuitivo absoluto, uma vez que todo conhecimento formulado por signos tem a sua realidade não em uma visão instantânea e carente de relações, e sim na interpretação de um pensamento-signo por meio de um pensamento que sucede no tempo, o qual, a sua vez, se converte em um signo para outro pensamento, e assim sucessivamente, até o infinito .
Para Peirce, ainda que exista fenômenos exteriores a linguagem humana, eles não deixam de ter um caráter sígnico. Não obstante, quando esses fenômenos são interpretados, eles alcançam apenas um caráter sígnico “degenerado”. Para Peirce, há signos que são “duplamente” degenerado, como no caso das “imagens” ou “modelos”, que carregam em si a função icônica, a qual serve para “representar” que algo é assim na qualidade de (quali-signo, ícone, Primeiridade). Dentre esse signo, Peirce explica que há um outro signo, que é “degenerado” de modo simples. É o caso da função dêitica da linguagem (índice), que está implicada sobre a relação fática dinâmico-física de determinados processos naturais .
De uma maneira distanciada, podemos então dizer, com Peirce, que a realidade, mesmo sem a existência do ser humano, possui funções lingüísticas para poder ser interpretada: o ícone como qualidade de algo assim em sua presentidade, e o índice, como indicativos de algo para algo em sua secundidade. Essa linguagem, poder-se-ia dizer em termos do jovem Wittgenstein, é a linguagem que figura a estrutura ontológica do mundo. Porém, a relação sígnica da linguagem é genuinamente triádica, isto é, ela é composta de signo, do objeto designado e do interpretante. Dessa maneira, tanto a função sígnica do ícone, quanto a função sígnica do índice, só são o que são graças a um terceiro, ou seja, ao interpretante. A linguagem deste, que é a linguagem humana, a sua vez, ao contrário das funções icônica e deítica, se baseia fundamentalmente em símbolos (terceridade). No entanto, a linguagem humana só é possível graças as suas três funções: a icônica, a deítica e a simbólica, aonde uma complementa mutuamente a outra .
Para Apel, a partir da semiótica de Peirce é possível colocar em xeque o atomismo lógico do primeiro Wittgenstein, e todo o desenvolvimento da filosofia analítica moderna da primeira fase que exclui o sujeito da filosofia e que não confere relevância filosófica à dimensão pragmática da linguagem. Conforme Apel, analisar a linguagem somente por meio de sua dimensão sintático-semântica é analisar uma linguagem que possui somente as funções icônicas e deíticas, e não a função simbólica . Mas, acima de tudo, para Apel o maior mérito da semiótica de Peirce é a transformação que ela efetua em relação à filosofia clássica transcendental de Kant. Com ela, Peirce pode então não somente demonstrar que é a linguagem que fundamenta o saber e o agir humanos com sentido enquanto tal, como supera também a distinção kantiana entre objetos cognoscíveis e objetos incognoscíveis, entre filosofia prática e filosofia teórica, e com isso, a definitiva superação do solipsismo metódico.
Na transformação da filosofia clássica transcendental de Kant, Peirce substituiu a “lógica transcendental” kantiana, que tem o seu ponto “mais alto” na unidade da “síntese transcendental da apercepção”, por uma “lógica sintética da pesquisa”, que tem o seu ponto “mais alto” na unidade da “última opinião da comunidade indefinida de investigadores”. No processo para tal transformação, Peirce parte do três tipos de raciocínios de sua lógica da pesquisa, bem como os três tipos de signos como ilustrações de suas três categorias fundamentais, para poder chegar numa resposta definitiva de como a experiência é possível – para Kant, a experiência é possível graças a “síntese transcendental da apercepção”.
Para demonstrar esse itinerário peirciano, é sensato antes de qualquer coisa definir o conceito de signo proposto por Peirce. Para ele, um signo, ou Representamem, é “algo que representa, para um interpretante, algo diferente em certo aspecto ou qualidade” ; ou melhor: “é um Primeiro que se coloca numa relação triádica genuína com um Segundo, denominado seu Objeto, que é capaz de determinar um Terceiro, denominado seu Interpretante, que assuma a relação triádica com seu Objeto, na qual ele próprio está em relação com o mesmo objeto .
Conforme Peirce, no signo estão implícitas três categorias: a qualidade isenta de relações, que expressa algo como algo em seu ser-assim por meio da função do signo ícone (imagem), e que se chama categoricamente de “presentidade” ; a relação diática do signo com os objetos por ele designado, que corresponde ao signo índice (pronomes como: isto ali) e que é “secundidade” ; e por fim, a relação triádica do signo enquanto mediação de algo para um interpretante, que é a categoria “terceridade” e tem o símbolo como signo correspondente . Ora, a partir desses três tipos de signos, Peirce pode então abstrair os três raciocínios da pesquisa, que são: a dedução, que corresponde à terceridade, e que é um mediação racionalmente necessária; a indução, que corresponde à secundidade, e que é um raciocínio que funciona como confirmação do que é geral pelos fatos apresentáveis aqui e agora; e finalmente, o raciocínio abdutivo ou hipotético, que corresponde à terceridade e que funciona como cognição de novas qualidades do ser-assim .
Após essa distinção entre os raciocínios, Peirce encontra no raciocínio hipotético a resposta de como a experiência é possível. Para Peirce, o raciocínio hipotético, enquanto opinião, além de ser o único raciocínio que pode elaborar um conhecimento novo do real , elimina definitivamente a distinção kantiana entre objetos cognoscíveis e incognoscíveis. Para Peirce, dar uma opinião sobre real significa dizer que o real é cognoscível, de tal maneira que a única distinção que se pode fazer sobre a realidade é o que já se conhece e o que se pode conhecer infinitamente, ao longo do tempo. Conforme Peirce, até mesmo dizer que há coisas em si incognoscíveis é dar uma opinião semanticamente consistente e verdadeira sobre as coisas-em-si. Deste modo, a possibilidade de dar uma opinião sobre o real responde como a experiência é válida e possível .
Para Peirce, uma vez que a opinião representa a essência do conhecimento, é sobre ela que se pode conferir validade ao saber e o agir com sentido enquanto tal. Não obstante, essa opinião não pode ser a opinião de uma única pessoa, ou de uma consciência em geral em sentido kantiano, mas deve ser a última opinião que se alcança ao longo do tempo por todos os membros da comunidade indefinita de investigadores, sob a reserva do princípio de falibilismo. E, uma vez que essa opinião é dada na comunidade indefinida de investigadores, é exigido por parte dos seus membros um certo engajamento ético, aonde cada investigador tem necessariamente de se despojar de seus interesses, inclusive seus interesses existenciários (em sentido kierkgaardiano) pela salvação de sua alma. Sendo assim, diante de tudo isso, pode se dizer que Peirce elimina os conceitos de coisa-em-si incognoscível, de aparência e mera ilusão e também, com o seu socialismo ético, a superação da distinção entre filosofia teórica e prática .
3. Conclusão.
Peirce, ao mostrar que a experiência é possível graças a capacidade humana de opinar, supera dessa maneira tanto o solipsismo metodológico da corrente da filosofia clássica transcendental de cunho kantiano, quanto a teoria analítica dos filósofos analíticos da primeira fase. Ao fazer a superação do primeiro, ele resolve o problema entre pensamento e linguagem, afirmando que não há conhecimento sem a mediação lingüística – não há “verdades” auto-evidentes e auto-intuitivas. Ao superar o segundo, ele coloca em cheque aquilo que a reviravolta lingüístico-pragmática colocou bem depois dele, a de que a análise sintático-semântica da linguagem é insuficiente para validar os nossos conhecimentos, pois é preciso analisar a linguagem em todas as suas dimensões: sintática, semântica e também pragmática.
Não obstante, o seu maior mérito consiste, apesar de sua limitação científica , deixar por conta de uma comunidade de investigação a questão acerca do sentido de nossos saberes e de nossas ações, e não por conta de uma “consciência em geral” ou por conta de “teorias sobre coisas ou estado de coisas”. Fazendo isso, ele deixa por conta de um “nós” científico , o qual Apel utilizará mais tarde para a realização de uma filosofia que tem como princípio não o “eu penso”, mas sim o “nós pensamos, nós argumentamos, nós raciocinamos.”
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.
APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia I – Introdução, 2000
______________ Transformação da Filosofia II – De Kant a Peirce: A transformação semiótica da lógica transcendental, 2000.
______________ El camino del pensamiento de Charles S. Peirce, 1997
PEIRCE, Charles, S. Semiótica – Ícone, Índice e Símbolo, 1995
RUEDA, Luis Sáez. Apriori de la facticidad y apriori de la idealizaçion – Opacidad y transparência. Entrevista com K. –O. Apel, In: FERNÁNDEZ, Domingo Blanco. (org. Et. al.) Discurso y realidad, em debate com K. –O. Apel, 1994
OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Correntes fundamentais da ética contemporânea, 2001.
DELACAMPAGNE, Chiristian. História da Filosofia no séc. XX, 1997, p. 18-19.
SILVA, Glauber da Rocha. O conceito transcendental-hermenêutico de linguagem em Karl-Otto Apel, 2007, p. 29.
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